
O deputado Hugo Leal no webinar: importância da figura do informante do bem estar prevista no Código Penal e no Código de Processo Penal – Reprodução/YouTube
Em 2006, no âmbito a CPI dos Bingos, o caseiro Francenildo Costa denunciou que o então ministro Antonio Palocci frequentava uma casa em Brasília (DF) utilizada por lobistas interessados em fechar negócios com o Governo Federal. Nas semanas seguintes, Costa perdeu o emprego, teve a vida devassada e o sigilo bancário quebrado sem autorização judicial. Só em 2019, 13 anos depois, Francelino viu o STJ confirmar a sentença da ação de reparação de danos que moveu contra o banco pela quebra indevida do seu sigilo. “Este é um exemplo claro, que ainda circula na memória de alguns, do que seria um típico ‘reportante do bem’ e de quais proteções ele mereceria”, exemplificou o deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ) durante o webinar “Whistleblower: A Lei Anticrime e o papel da testemunha informante na fiscalização da administração pública”, realizado na última quarta-feira (15/7).
Relator parcial do projeto de reforma do Código de Processo Penal na Câmara, o parlamentar lembrou ainda que a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro lançou como uma de suas ações elaborar diagnóstico e proposição de aprimoramento do sistema brasileiro de proteção e incentivo ao denunciante e ao whistleblower. “Esta questão do whistleblower, esse denunciante do bem que não cometeu qualquer irregularidade, pode e deve ser analisada na modernização do código para adequarmos a legislação já existente”, afirmou Hugo Leal que participou do weibinar – promovido pelo Instituto Justiça & Cidadania e pelo Instituto Brasileiro de Rastreamento de Ativos (IBRA), com apoio do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) – ao lado do promotor Eronides Santos (MPSP) e dos advogados Manoel Peixinho e Rodrigo Kaysserlian.
Incluída no ordenamento jurídico nacional apenas no ano passado pela Lei Anticrime (Lei nº 13.964/2019), a figura do whistleblower ainda é muito confundida no Brasil com a do delator. Porém, enquanto o delator ou colaborador premiado é a pessoa inserida na organização criminosa que denuncia seus cúmplices em busca de benefícios legais, o “informante do bem” ou “testemunha denunciante” é aquele que embora não participe da suposta prática ilícita, compartilha informações capazes de revelar o modo de atuação da organização criminosa. Diz o art. 4º da Lei Anticrime que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão manter unidades de ouvidoria ou correição para “assegurar a qualquer pessoa o direito de relatar informações sobre crimes contra a administração pública”. E que os informantes terão o direito de preservar suas identidades, bem como receber proteção contra eventuais retaliações, inclusive com a possibilidade de inclusão em programas de proteção de testemunhas.
Confrontado com o fato de que a Lei Anticrime conferiu aos estados e municípios a responsabilidade pelo tratamento das denúncias dos whistleblowers, o deputado Hugo Leal defendeu o aprofundamento da discussão sobre as ferramentas adequadas para isso. “As ouvidorias estão estruturadas para responder questões mais rotineiras, melhorar serviços e atender aos cidadãos. Não estão aptas a receber ou investigar denúncias de crimes”, opinou o parlamentar, acrescentando que o debate sobre o estímulo às denúncias em âmbito estadual e municipal ainda precisa ser aprofundado, o que não foi possível pela rapidez com que a Lei Anticrime tramitou no Congresso Nacional.
“É um tema que ainda gera muitas dúvidas e algumas controvérsias dentro e fora da comunidade jurídica. Estarão os órgãos públicos de todas as esferas preparados para lidar com informações tão sensíveis, capazes de colocar em risco a integridade dos denunciantes? É adequado o tratamento de dados sigilosos desta natureza por indicados políticos, em órgãos de governo, como são as ouvidorias estaduais e municipais? Aprofundar essas discussões foi o que motivou o webinar”, explicou o presidente do Instituto Justiça & Cidadania, Tiago Salles, que mediou o debate.
Mestre pela Academia Internacional de Combate à Corrupção de Viena, com atuação em processos de rastreamento de ativos em litígios transnacionais, Rodrigo Kaysserlian explicou que a figura do whistleblower está prevista na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, de 2003, da qual o Brasil é signatário. A UNCAC, na sigla em inglês, reforça que os denunciantes precisam de fortes mecanismos de proteção legal para protegê-los de retaliações e permitir que denunciem com segurança e liberdade. “A corrupção acontece em qualquer lugar, geralmente revestida de formalidades legais. De longe o ato parece lícito, o que dificulta muito identificar quando o errado acontece. Daí começamos a compreender a importância do whistleblower”, destacou Kaysserlian.
Também questionado se acredita que o whistleblower será adequadamente implantado pelos estados e municípios com estruturas institucionais mais limitadas, o advogado Manoel Peixinho admitiu que de fato existe “fragilidade” no sistema de proteção ao servidor público em grande parte do País. O que, para o presidente da Comissão de Direito Administrativo do IAB, inibe os servidores públicos de delatar ou confessar crimes. Nesse sentido, Peixinho defendeu alterações sistêmicas na legislação, como uma reforma da Lei nº 8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores federais.
As diretrizes da lei federal, segundo o advogado, seriam seguidas pelos estados e municípios para definir quais benefícios e garantias poderiam ser oferecidas ao servidor que decida reportar ilícitos contra a administração pública. “Por se tratar de tema tão relevante, quero até forçar um pouco a barra e provocar o deputado Hugo Leal, se talvez não fosse necessária uma alteração na Constituição para estabelecer princípios dessa delação administrativa. Porque as normas constitucionais são principiológicas e poderiam ser seguidas de lei complementar que criasse mecanismos para todos os entes federativos”, argumentou Portinho.
O deputado Hugo Leal respondeu que, pelo fato da Lei Anticrime ter alterado a legislação de forma “difusa”, com mudanças no Código Penal (CP), no Código de Processo Penal (CPP) e em leis esparsas, o ideal será sistematizar as mudanças tanto no CP quanto no CPP. “Defendo a sistematização jurídica de todas essas figuras que nós tratamos aqui: a delação premiada, o acordo de leniência, a testemunha informante, o denunciante do bem. Quanto melhor sistematizado isso estiver, melhor será a persecução penal”, apontou o parlamentar, relator parcial da reforma do Código de Processo Penal, reponsável por Meios de Prova e Ações de Impugnação
O promotor Eronides Santos acrescentou que o debate sobre os mecanismos de proteção à testemunha denunciante também deve ser estendido aos funcionários de empresas privadas que mantêm contratos com a administração pública. “Do contrário, vamos criar uma situação kafkiana: se reportar ao chefe não vai dar em nada e pode perder o emprego, se reportar ao ente público pode também não dar em nada e novamente correr o risco de perder o emprego”, pontuou. O promotor também chamou a atenção para a necessária verificação da veracidade das denúncias, pois as mesmas, quando infundadas, podem arruinar vidas e carreiras injustamente: “É preciso que a informação receba um tratamento adequado e seja verificada antes que se parta para uma caça às bruxas, sob a pena de se cometer injustiças maiores”.